Querido diário, caro leitor/a, ao ler pela segunda vez o livro clássico da literatura mundial Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, não me lembrava que sua leitura é tão prazerosa e possuidora de sentido. Quando leio um livro, costumo fazer anotações interpretativas nas margens. É um tipo de fichamento. Quando voltar a leitura dele já estou orientado. Uma das coisas que mais me chamou a atenção nessa obra, são os termos, as palavras e os ditados utilizados por Machado. Lembrando que o escritor sempre reflete em seus livros, o espírito de seu tempo. Os costumes e regras morais que percorriam pelo tecido social naquela época do Brasil Império, ainda respingam na sociedade brasileira dos dias atuais. Parece que esses dizeres e regras morais que aparecem em Memórias Póstumas, estão impregnados na cultura brasileira, e não são desconhecidos aqui no sul. Inclusive, muitas delas remetem a minha infância. Mesmo naquela época, desconhecendo a obra de Machado de Assis, eu falava e ouvia esses ditados e palavras.
Não pretendo aqui fazer uma biografia de Machado de Assis. Isso pode ser consultado até na internet. Minha proposta é analisar algumas características que permanecem na nossa sociedade brasileira atual, presentes na obra no livro que apareceu dia 11 de janeiro de 1881, uma terça-feira, inaugurando a segunda fase da tradição literária machadiana. Machado de Assis é sem dúvida, o nosso maior escritor, nosso maior patrimônio, reconhecido mundialmente e inclusive comparado a escritores clássicos ingleses como Charles Dickens e Shakespeare. Aliás, com relação a isso, é possível perceber que nos dias atuais ele está cada vez mais sendo descoberto. Alguns estudiosos da sua obra chegam a dizer que ele havia elaborado a ciência da psicanálise, antes de Freud, que infelizmente não foi reconhecida pelos brasileiros de seu tempo.
Esses mesmos estudiosos de Machado dizem que Freud era imperativo, ou seja, chegou afirmando e divulgando sua descoberta e propagandeando aos quatro cantos, enquanto Machado que escreveu antes de Freud, não era tão narcisista como Freud. Agora ele começa a ser lido, inclusive por pessoas do mundo todo que não estão entendendo porque os brasileiros não reconheceram a genialidade da obra machadiana. De qualquer forma, quando me referi no título deste artigo de que a obra dele já foi lida por nós, quis dizer que fizemos isso mesmo sem saber. E não há dúvida de que se Freud não houvesse desenvolvido uma ciência da Psicanálise, ela teria sido machadiana. Então vejamos alguns termos usados na obra que permanecem no nosso cotidiano. Vamos começar pelas frases: “o tempo caleja”; “pé-rapado”; “um cainho” (sovina); “um lorpa” (um pateta).
Como não entender que as sensibilidades que temos nos dias atuais sobre como a mulher e o homem devem agir não vem do tempo da obra machadiana? Veja só, num tempo em que não havia televisão, nem rádio e nem fotonovela de revistas, aparece o seguinte trecho em Memórias Póstumas: “puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa. Ela estremeceu, colheu-me a cabeça entre as palmas, fitou-me os olhos, depois afagou-me com um gesto maternal”. Ora, este é um gesto feminino que se vê nos dias de hoje, nas novelas e filmes e no nosso cotidiano, nos namoros, nos carinhos que enchem os olhos de quem assiste uma tela, ou vê um casal de namorados se beijando no muro ou no portão, ou mesmo o namorado que se arrepia ao sentir essas carícias da namorada. Isso demonstra que esses gestos se caracterizam como femininos, ou seja, carinhos como ao beijar o namorado, a mulher colhe o rosto ou a cabeça do namorado ou marido entre as palmas da mão, e beija ou afaga com um gesto maternal. Algo tão representado por mulheres nos dias atuais, encontra eco na obra machadiana. Essa é uma daquelas provas que mostra que a literatura não está desligada do real. Temos o costume de dizer que os livros são uma coisa e a vida real é outra. Não, nós estamos enganados.
Todo escritor escreve a partir do que está vivendo e vendo no seu tempo. Mas eu digo que a obra machadiana faz escola no cotidiano da vida dos brasileiros. Só vamos perceber isso, depois de ler um livro dele. Então vejamos esse outro trecho de Memórias Póstumas, que caracteriza a mulher nos dias de hoje: “observei que a adulação das mulheres não é a mesma coisa que a dos homens. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão a ação lisonjeira da mulher, uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há de ter sempre para ele uns ares de mãe ou de irmã ou ainda de enfermeira, outro ofício feminil”. E como não falar do trecho onde Brás Cubas narra que “preferia a pura ingenuidade de D. Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o ar” fazendo com que Brás Cubas pergunte: “- Quem tem isso? Perguntou Brás Cubas. – Faz mal respondeu D. Plácida”. E quando alguém lhe falou na infância que apontar o dedo para uma estrela nascia uma verruga? Quem nunca passou por uma dessas duas situações? O que dizer disso? Ora, é simples. A literatura não está desgarrada do real. Machado de Assis estava escrevendo a partir de suas vivencias e dos costumes da época, que atravessaram os anos e estão presentes nos dias de hoje, e que muitas vezes não sabemos nem de onde vem tudo isso.
E o que falar do número treze? Ele há muito tempo é associado ao azar. Será que foi na literatura de Machado que isso começou? Ou ele apenas refletiu na sua obra o que já se falava no seu meio? Então vejamos o trecho em que Virgília diz a Brás que seu marido não aceitou a nomeação de Presidente de Província, pelo simples fato de que “o decreto trazia a data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação fúnebre. O pai morreu num dia 13, treze dias depois de um jantar em que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n. º 13”.
E para fechar nossa análise com chave de ouro, um costume de etiqueta do período imperial do Brasil que atravessou a noite dos tempos e está imersa em nossa sociedade nos dias atuais, é a seguinte situação: de que um casal nunca vai jantar em casa de um homem solteiro. Essa parte aparece no livro quando Brás Cubas, ao ser convidado pelo cunhado e sua irmã para ficar para o jantar, ele prontamente aceita, mas com a condição de que “amanhã ou depois, hão de vir jantar comigo”. Sua irmã Sabina responde que não sabe por que é casa de homem solteiro e que o irmão deve se casar e lhe dar uma sobrinha. Nos dias de hoje essa regra moral paira sobre nossas cabeças, ou seja, de que quase que certamente um casal não aceita convite para jantar na casa de um homem solteiro. Por essa e outras é que Memórias Póstumas de Brás Cubas é talvez o maior clássico da literatura brasileira, do nosso maior escritor, Machado de Assis. Aqui certamente não se esgota esse assunto. Na minha próxima coluna seguirei escrevendo sobre outros enigmas que estão presentes nesta obra magnífica. Até a próxima oportunidade caro leitor/a.