sábado, dezembro 14, 2024
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Quinta da opinião: O centenário da morte de Franz Kafka

Leia a coluna de Vitor Marcelo Vieira na Quinta da Opinião


O trecho a seguir lhe é familiar? “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos”. Gregor Samsa vive com sua mãe, pai e com a irmã. A narrativa se concentra numa situação embaraçosa em que os três tentam se esforçar para descobrir o comportamento adequado para a situação que se desenrola. Ele acorda e tem sua consciência envolvida por um corpo que é estranho para ele, um corpo antinatural. Mas toda essa situação é narrada de uma forma fria e num tom preciso como se o pesadelo fizesse parte do cotidiano de todos os envolvidos no diálogo.


Kafka escreve suas dores. As dores de quem tem um cotidiano interminável e sem perspectivas de nada. Dia após dia as infelicidades se acumulam, e toda essa saga é sintetizada numa situação de diálogos característicos de uma manhã antes do horário de expediente. Pois, afinal de contas Gregor Samsa, após sonhos intranquilos, acorda pela manhã e se vê transformado num inseto gigante que tem uma couraça dura. Ele pode sentir isso, pois está de costas com as inúmeras perninhas para o alto. Percebe que seu ventre é marrom e abaulado. Está tomado por pensamentos intranquilos sobre o cotidiano de um caixeiro-viajante que deve pegar o trem para ir ao trabalho. Kafka não diz o nome do inseto gigante no qual Gregor se transformou, mas os detalhes que vão surgindo ao longo da narrativa fazem o leitor imaginar.


A Metamorfose é um daqueles livros que você não deve ler apenas uma vez na vida, mas várias. Ademais, sua narrativa trata da angústia de bilhões de pessoas pelo planeta, que no amanhecer são desgostosas com o que fazem, com aquilo que devem fazer ao saírem de casa nos instantes que surgem os primeiros raios do sol. Todo autor escreve a partir das inquietações de seu tempo e reflete isso na sua obra. É possível perceber a dor de Kafka em todo o livro, inclusive quando Samsa diz “Ah, meu Deus! Entra dia, sai dia, viajando. Me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso! ”

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Imagine você acordando numa situação semelhante ao de Gregor Samsa. O que você faria ao ver suas inúmeras perninhas finas descontroladas, se movimentando frente aos seus olhos? Você diria para si que iria voltar a dormir mais um pouco para ao acordar esquecer todas essas tolices? Você também pensaria que sua profissão é cansativa? E que não aguentava mais viajar de um lado para outro porque a alimentação era ruim e a troca de trens era um fardo diário? Você também pensaria que a vida dos outros caixeiros viajantes era melhor que a sua? Que eles viviam como mulheres num harém e que enquanto você após longo período de trabalho, ao voltar ao hotel para transcrever as encomendas, se deparava com aqueles outros caixeiros viajantes folgados que ainda estavam tomando café? Que se você fizesse isso, seu chefe voaria com você pela janela da empresa? Você também como Samsa, não largou seu trabalho por causa do que seus pais irão falar? E você também teria vontade de falar o que pensa do fundo do coração, para seu chefe? E que ao ouvir, ele cairia de sua banca? Pois você acha estranho o modo como ele senta nela e fala de cima para baixo com seus funcionários? Gregor ainda na cama pensava que ainda não era hora disso, pois não havia pagado a dívida que seus pais tinham com o chefe dele, mas que assim que pagasse iria fazer isso. E sabia que chegaria então a hora da ruptura. Mas por enquanto, tinha que levantar, pois o trem sairia as cinco horas. Mas logo percebeu que já era seis e meia e se assustou que não ouviu o despertador. E agora, o que fazer? O próximo trem sairia as sete horas, e mesmo que o pegasse, não iria evitar a explosão do chefe, pois ele a essa altura já tinha sido comunicado do seu atraso.


Então você começaria a pensar e falaria que estava doente? Mas como fazer isso, se você assim como o Gregor Samsa nunca tinha ficado doente havia cinco anos? Seria suspeito. Além do mais, logo o chefe viria com o médico do seguro de saúde, iria ralhar com os pais por causa do filho preguiçoso e se apoiaria totalmente nos argumentos do médico, para quem só existia pessoas sadias. Assim seguia os pensamentos enquanto os ponteiros do relógio seguiam sua marcha imperdoável. Alguém bateu na porta. Era sua mãe avisando que faltava pouco para as sete. Gregor queria explicar tudo, mas se limitou a dizer que já iria. Em seguida veio o pai pedir o que estava acontecendo? A irmã também logo se aproximou da porta lateral e perguntou a Gregor se ele não estava bem. Eram quase sete e quinze quando a campainha da porta da frente do apartamento soou. Era o gerente da firma em pessoa. Gregor pensou “porque estava condenado a servir numa firma em que à mínima omissão se levantava logo a máxima suspeita? Será que todos os funcionários sem exceção eram vagabundos? ” Não havia, pois, entre eles nenhum homem leal e dedicado que, embora deixando de aproveitar algumas horas da manhã em prol da firma, tenha ficado louco de remorso e literalmente impossibilitado de abandonar a cama? ” Após essas reflexões tentou se atirar da cama, mas caiu de costas fazendo um barulho, o qual foi percebido pelo gerente, de que havia caído alguma coisa lá dentro. A partir daqui caro leitor/a, convido você a acessar a literatura de Franz Kafka por este livro, A Metamorfose, e perceberá que o adjetivo kafkiano se tornou sinônimo de incompreensível.


Resolvi escrever esse texto, pois este ano marca o centenário da morte de Franz Kafka. Foi no dia 3 de junho de 1924, que o escritor mergulhou em um sono tranquilo. Internado em um sanatório próximo de Viena, na Áustria, o escritor tcheco foi vencido por uma tuberculose e pela desnutrição, aos 40 anos. Ele é lido por poucas pessoas, apenas um pequeno círculo intelectual. Ele não morreu como um autor famoso. A maior parte de sua obra não havia sido publicada e orientou seu amigo Max Brod a queimar todos seus originais. Felizmente para nós, mortais, Brod desobedeceu a vontade do amigo, um gesto que mudou as letras do século XX. Cem anos depois, Kafka está mais vivo do que nunca e cada vez mais lido, estudado, traduzido e reinterpretado. Sua escrita alterou nossa percepção do mundo.


A obra de Kafka é ao mesmo tempo clássica e contemporânea, de maneira que permite a qualquer pessoa projetar os seus anseios. O termo “kafkiano” ultrapassou a literatura e passou a ser aplicado a qualquer cenário absurdo ou sinistro. O cotidiano de Gregor Samsa é o da maioria das pessoas do planeta Terra. Toda essa maioria acorda cedo para ir trabalhar e talvez tenha uma série de inquietações e infelicidades para expressar, como Kafka faz na sua obra. Esse é mais um motivo pelo qual A Metamorfose é um clássico da literatura mundial. Abraços caro/a leitor/a. Até a minha próxima análise de literatura.

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