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Ana Karênina e os nossos pensamentos

Leia a coluna de Vitor Marcelo Vieira na Quinta da Opinião

O ano era 1875 numa pequena aldeia perto de Iásnaia Poliana na província de Tula na Rússia. Um lugar onde nada acontecia que pudesse sacudir a vida daquela gente que ali vivia. O único divertimento era se reunir na estação, e de vez em quando ver passar o trem que raramente deixava ali algum passageiro. Num certo dia correu sangue sobre os trilhos e a aldeia inteira se agitou. Uma mulher que era sobrinha e amante de um homem poderoso da aldeia de Iássienki, desesperada com sua vida amorosa, jogou-se à linha do trem. Leon Tolstói que nascera ali na aldeia em 28 de agosto de 1828, correu para ver o cadáver e decidiu investigar as razões que teriam levado a mulher ao suicídio. Há tempo ele pretendia escrever a história de uma dama da alta sociedade russa envolvida numa trama de paixões e decadência. O suicídio da mulher forneceu-lhe o desfecho para seu romance e o perfil para a protagonista. E Ana Karênina ganhou vida.

Publicado de 1875 a 1877 no jornal Mensageiro Russo, agradou intensamente ao público e provocou variadas reações entre os críticos. Dentre os grandes romancistas russos, o único a aplaudir o livro foi Dostoiévski. Dessa forma, depois desse breve contexto sobre como nasceu a obra que se tornou clássico da literatura mundial, vamos a parte do livro que considero a parte mais impactante, o desfecho.


A primeira frase do livro dá o tom do livro: “Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”. Para tecer alguns comentários, escolhi o capítulo 30 que trata do desfecho da obra. Considero que é aí que Tolstói mostra uma das suas maiores genialidades: contar os detalhes do entorno percebidos pela protagonista, Ana que envolta em seus pensamentos vai fazendo ligações com aquilo que vê a sua volta. Ela segue para a estação embarcada numa carruagem, desolada, perturbada, desanimada, onde acabará com sua dor e seu sofrimento, após uma desilusão amorosa. Quando o leitor ou leitora chega nessa parte do livro, não deixará de tentar interagir com a dor de Ana. Quando o li, a imaginação me colocou ao lado dela na carruagem, vendo todos os detalhes daquilo que ela via. Era como se eu pudesse ver pelos olhos dela. Confesso que depois de ler a obra, me senti por muito tempo vivendo naquela atmosfera, pois Tolstói faz você se envolver e entrar no livro. Lembro que senti vontade de sair para o interior e observar as plantações e ver lá os camponeses que Tolstói falava, trabalhando. Ana Karênina me fez sair desse mundo. É divino, nada se compara a esse prazer. Mas vamos aos detalhes dos pensamentos de Ana que seguia na carruagem: “Começo a ver claro. Em que estava pensando há pouco? Ah! Sim! Em que a luta pela vida e o ódio são as únicas coisas que unem os homens”. Ana viu um operário completamente bêbado conduzido por um guarda. “Este ao menos encontrou o que queria. O Conde Vronski e eu não encontramos o prazer, embora muito esperássemos dele”. “Tirou de mim quanto pôde: já não lhe faço falta”. “Ama-me ainda talvez, mas de que maneira? Enquanto o meu amor se torna cada vez mais egoisticamente apaixonado, o dele extingue-se pouco a pouco. E não há remédio para a situação. Ele é tudo para mim, mas ele pelo seu lado, tudo faz para me fugir. Que bairro desconhecido é este? Ruas que sobem a perder de vista e casas e mais casas onde mora uma multidão que se odeia mutuamente. Por que é que essa mendiga com o filho ao colo supõe que inspira piedade? Não nos encontramos todos à superfície da terra para nos odiarmos e nos atormentarmos uns aos outros? Em que pensava eu quando interrompi meus pensamentos? Em que não posso descobrir uma situação onde a minha vida não seja um tormento, em que todos fomos criados para sofrer e que o sabemos embora tudo façamos para o esquecer”.
Na estação Ana deteve-se na plataforma procurando lembrar-se do que fora ali fazer e o que pretendia. “Meu Deus! Para onde ir?” Desceu para a via. Quis atirar-se para debaixo do vagão que chegava junto dela, se distraiu e não deu tempo. Era preciso esperar o imediato. Uma sensação parecida com a que costumava experimentar ao entrar na água à hora do banho se apoderou dela. Esse gesto familiar despertou-lhe na alma recordações da infância e da juventude. Não apartava os olhos do vagão que se aproximava. No momento preciso em que o centro desse vagão que lhe passava diante, afundando a cabeça entre os ombros atirou-se lhe para debaixo caindo com o corpo em cima das mãos. Depois, com um ligeiro movimento, como se quisesse ainda levantar-se, quedou ajoelhada. Nesse instante sentiu horror do que fazia. “Onde estou eu? Que faço eu? Para quê?” Quis retroceder, atirar-se para trás, mas entretanto qualquer coisa enorme, inflexível, a apanhou pela cabeça, arrastando-a de costas. “Senhor, meu Deus, perdoa-me tudo!” Um homenzinho martelava uns ferros por cima dela. E a vela, à luz da qual Ana lera o Livro da Vida com todos os seus tormentos, todas as suas traições e todas as suas dores, resplandeceu, de súbito, com uma claridade maior do que nunca, alumiando as páginas que até então haviam estado na sombra. Depois crepitou, estremeceu e apagou-se para sempre.

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O que Ana passou, e falo sobre seus pensamentos, é aquilo que povoou ou povoará os pensamentos das pessoas, inevitavelmente em algum momento da vida. Depois que li esta obra percebi que ela estava falando de mim também e que essas dores que Ana sentiu mais cedo ou mais tarde eu sentiria novamente. A vida da personagem de Tolstói fala de sentimentos e pensamentos que estão espalhados por aí, em cada canto em cada rua, em cada calçada, ônibus, no trabalho, em casa, todos os dias. Ana Karênina nos mostra pelos seus olhos e pensamentos como é o momento do desespero, do ódio, da revolta. Aliás, revolta é o que ela sentiu porque os pensamentos não lhe davam trégua e martelavam a toda hora sua cabeça lhe dizendo que ela fez tudo pelo seu amor, pelo seu Vronski. Se sentiu ultrajada como todos nós nos sentimos todos os dias, ou iremos sentir ao não receber o mesmo amor e mesmo carinho da outra pessoa. Ana nos mostra que o mundo das pessoas é cínico. Mostra que as pessoas vão as igrejas, mas se odeiam mutuamente. Ana descortina as dores de uma mulher, e, de um homem também.

Na carruagem seus pensamentos lhe atormentam e as dores não lhe dão trégua. Lembra-se a todo momento de que foi desejada, mas depois não foi mais. E o momento final quando se joga nos trilhos na frente do vagão do trem demonstra com imensa tristeza o desespero de alguém que se arrepende de estar ali fazendo aquilo, mas que as circunstâncias determinam que é tarde, que acabou. Ana Karênina nos ensina que a vida passa e quando nos damos conta, não há mais nada a fazer. Por favor, leia em sua vida Ana Karênina. Seus sentimentos e emoções irão explodir de seu peito após ler este livro, de modo que você nunca será mais a mesma pessoa. E isso é muito bom, eu garanto. Um abraço e até a próxima.

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