
Nesta quarta-feira (1° de outubro de 2025), o governo federal publicou a Portaria SPA/MF n.º 2.217/2025 e a Instrução Normativa SPA/MF n.º 22/2025, que realizam aquilo que muitos danos sociais já denunciavam: a proibição explícita para beneficiários do Bolsa Família e do BPC usarem sites de apostas (bets).
Este é um salto regulatório — mais do que simbólico — em direção à proteção concreta dos recursos públicos destinados aos mais vulneráveis. Neste artigo de opinião, vamos analisar motivações, riscos, críticas e implicações dessa medida.
Mecanismo de bloqueio
As casas de aposta autorizadas terão obrigação de consultar o Sistema de Gestão de Apostas (Sigap) via CPF nos seguintes momentos:
- no momento do cadastro do usuário;
- no primeiro login diário;
- e a cada 15 dias para toda a base.
Se for constatado que aquele CPF é titular de benefício social (Bolsa Família ou BPC), a empresa deverá:
- negar o cadastro (se novo usuário),
- encerrar a conta em até 3 dias,
- avisar o usuário e permitir que ele retire voluntariamente os valores depositados no prazo de 2 dias.
Se essa retirada não ocorrer, a operadora devolve o valor. Se o valor ficar “abandonado” por 180 dias sem movimentação, vai para o Fies e para o Funcap.
Importante: o benefício social não será suspenso. A responsabilização recai sobre as plataformas de apostas, não sobre as pessoas físicas.
As empresas têm 30 dias para se adaptar ao novo regime, sob pena de multas de até R$ 2 milhões por infração.
Razões jurídicas e fatos motivadores
Essa medida atende a uma decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ADIs 7721 e 7723, que exigem do Executivo ações concretas para impedir que benefícios sociais sejam usados em apostas.
Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) já havia determinado decisões para que o governo adote mecanismos de bloqueio.
Vale lembrar também que, em 2024, um levantamento do Banco Central indicou que beneficiários do Bolsa Família movimentaram cerca de R$ 3 bilhões em apostas via Pix em um único mês — um número que mobilizou críticas quanto ao uso indevido dos recursos públicos.
Há ainda o histórico de proposições legislativas: o PL 3703/24 já propunha proibir beneficiários de usar recursos em apostas esportivas — com sanções para quem descumprisse.
Em outras palavras: a polêmica vinha amadurecendo no Legislativo, no Judiciário e nos organismos de controle.
Por que “finalmente, proibiram” é uma frase com peso
Porque essa restrição era reclamada há anos por especialistas em política pública, economistas e entidades de proteção social. Os beneficiários do Bolsa Família estão entre as populações mais vulneráveis do país — e historicamente expostos a riscos como exploração financeira, endividamento e marketing abusivo. Neste cenário, permitir que recursos de programas assistenciais se misturem com apostas era abrir uma porta para um tipo de auto-lesão pública.
A ideia de que “o beneficiário pode usar o benefício como quiser” ressoa com noções fortes de liberdade individual — mas aplicar essa liberdade sem freios poderia permitir que o Estado indiretamente financiasse a ruína financeira de quem ele próprio tenta proteger. A medida, portanto, transcende intervenção técnica: é uma afirmação ética de que programas sociais não devem servir de alavanca para o jogo do azar.
Os desafios e críticas (justas ou não)
A eficácia dessa proibição depende, tipicamente, da qualidade da base de dados, da conectividade das plataformas com o Sigap, da capacidade de auditoria e do monitoramento constante. Se houver falhas — latência, lista desatualizada, contornos legais — muitos beneficiários poderão escapar do bloqueio ou ser injustamente impedidos de apostar mesmo após perder o vínculo. Críticos alertam que a medida pode se tornar maior símbolo do que instrumento real.
O site Cointelegraph já destacou que, para torná-la eficaz, será necessário investir em tecnologia e em atualização contínua da base de dados.
Há também quem diga que, por perfil demográfico, muitos beneficiários não estariam entre os apostadores frequentes — mulheres compõem maioria dos beneficiários, mas são minoria entre jogadores online.
Liberdade individual e legalidade
É inevitável que surjam questionamentos jurídicos sobre se essa proibição fere o princípio da liberdade do indivíduo em dispor de seus recursos. Há argumentos de que o Estado, ao conceder benefícios, não pode impor restrições sobre como os beneficiários gastam esse dinheiro. Alguns advogados defendem que, se essa lógica for aceita, razões semelhantes poderiam justificar impedimentos para uso em cigarros, bebidas alcoólicas, loterias etc.
Por outro lado, a contrapartida é o risco de o Estado financiar, indiretamente, prejuízo social — e deixar impune a exploração dos mais vulneráveis.
Risco de mercado paralelo ou informal
Outra crítica é que a proibição poderá empurrar beneficiários para casas de apostas informais, sem regulação ou proteção, o que agrava riscos — fraude, lavagem de dinheiro, abuso de dados. Isso é sempre um risco quando se regula proibições em mercados amplos.
Sobrecarga institucional
O Estado terá de manter uma base confiável, atualizada e acessível, além de fiscalizar as empresas de apostas e lidar com contestações judiciais. Quem garante que o investimento institucional será proporcional ao efeito real? Erros ou dificuldades técnicas podem gerar danos reputacionais e judiciais.
E agora? O que esperar daqui para frente
- Fiscalização intensa nos primeiros meses
O primeiro impacto dependerá de quantas irregularidades serão detectadas e quantas disputas jurídicas surgirão. Muitas apostas serão bloqueadas — mas alguns beneficiários podem recorrer judicialmente por erro de cadastro ou falha de identificação. - Contestações judiciais
A tendência é que entidades de apostas tentem adversar a medida em instâncias judiciais, questionando constitucionalidade e execução prática. - Ajustes regulatórios
Será necessário evoluir a norma com base nos casos concretos, aprimorar o módulo “impedidos” e rever prazos ou sanções. - Efeito no mercado de apostas
O setor precisará investir fortemente em compliance, na integração de sistemas e em auditorias internas. Parte do impacto poderá recair nos custos operacionais das empresas. - Avaliação de impacto social
O governo e entidades de controle terão de acompanhar se essa medida efetivamente barrará desvio de recursos sociais para apostas — e se não criará efeitos colaterais perversos (contorno ilegal, discriminação, etc.).
Não é medida utópica: é medida necessária
“Finalmente, proibiram” não é chamado demagógico — é expressão de alívio e reconhecimento de que o Estado decidiu, enfim, colocar um limite ético claro entre assistência social e jogos de azar. Algumas imperfeições são inevitáveis; algumas críticas são legítimas. Mas era preciso tomar posição contra o uso indevido de benefícios por quem menos pode arcar com prejuízos.
Se essa medida for bem executada, com transparência, correções constantes e respaldo institucional, poderá se tornar referência de como políticas sociais e regulação devem caminhar juntas — protegendo os vulneráveis e reinstaurando o princípio de que benefícios públicos não são bônus para apostas.