
É inevitável a sensação de que estamos diante de uma contradição: o Estado desembolsa quase R$ 1,5 trilhão em auxílios sociais — montante expressivo que ronda a metade do orçamento de algumas grandes pastas — e, ao mesmo tempo, a sociedade pergunta: “trabalhar pra quê?”
A pergunta pode soar provocativa, como um trocadilho ou slogan de protesto. Mas é legítima — e merece resposta séria. Nos últimos seis anos, o Brasil lançou mão de programas gigantescos de transferência de renda, em especial após a pandemia. Entendemos a medida: proteger a fragilidade social, evitar a queda livre do consumo, amortecer a crise. Mas agora deve-se avançar a reflexão para uma segunda fase: qual o papel do trabalho, da empresa, da produtividade, do crescimento, dentro desse cenário de forte dependência do Estado?
Estado-assistencialismo ou ponte para a inclusão produtiva?
Quando o Estado assume o protagonismo da renda — via Auxílio Emergencial, Bolsa Família (ou seu sucessor Auxílio Brasil), Benefício de Prestação Continuada — coloca-se um peso enorme no “quem recebe”. Mas e o “quem produz”? O “quem trabalha”?
Se a intermediação do Estado vira parte fulcral da vida econômica de milhões de pessoas, corre-se o risco de criar uma cultura de dependência ou de acomodação. A pergunta “trabalhar pra quê?” surge nesse sentido: se há garantia de renda, onde está o estímulo para o emprego, para o empreendedorismo, para a inovação?
Claro: não se trata de demonizar o auxílio social. Muito pelo contrário. Trata-se de questionar como o auxílio está sendo canalizado para retornar à economia real, ao trabalho digno, à produtividade. A grande oportunidade está em usar o momento para “educar” esse ciclo: Estado → renda básica → trabalho → agregação de valor → salário → consumo. Sem esse ciclo, a transferência permanece uma despesa, não um investimento em capital humano ou social.
Trabalho, empresa e crescimento: a engrenagem esquecida
Se um montante tão elevado é gasto com auxílios, cabe refletir sobre o outro lado da balança: quem gera os empregos? Quem cria as empresas? Quem conecta o trabalhador para além do benefício?
Observamos que o Brasil—com suas micro e pequenas empresas esmagadas pela carga tributária, burocracia, infraestrutura precária e falta de qualificação — tem dificuldade em ativar esse motor. A pergunta “trabalhar pra quê?” aqui ressoa em empresas que contrariam: “para que serve contratar e investir se o ambiente institucional parece desincentivar o risco?”
E nas universidades, nos cursos de pós-graduação, nos programas de inovação — em que estou inserido como professor de estratégia — percebemos uma conexão entre formação, empregabilidade e empreender de fato. A renda assistencial não resolve o problema central: ampliar a produtividade, aumentar a renda gerada por hora trabalhada, criar startups que exportem ou sirvam globalmente.
Uma proposta para o caminho da autonomia
Para que o auxílio se torne ponte e não muleta, proponho três eixos de ação:
- Condições de vinculação com contrapartida produtiva
Transferências de renda — especialmente de caráter extraordinário — devem estar atreladas ao acesso a qualificação, consultoria de emprego/empreendedorismo, e à inserção gradual no mercado de trabalho formal ou na economia digital. Não na lógica de penalização, mas de estímulo à autonomia. - Ambiente favorável ao empreendedorismo e às PME
Se queremos que o trabalho recupere o seu valor social, precisamos de políticas que reduzam o custo de empreender, facilitem mercado, criem hubs regionais de negócio (como no sul do Brasil já vemos) e promovam a inovação nas cadeias locais — fomentando o “emprego digno” e o “trabalhar pra quê” com resposta. - Educação para o trabalho transformador
O ensino superior, os programas de pós-graduação, a pesquisa aplicada não devem olhar apenas para o mercado como está — devem moldar o mercado de amanhã. Inclusive integrando-se a empresas, governo e sociedade civil. A transferência de renda pode financiar, por exemplo, bolsas vinculadas à participação em projetos de inovação, startups ou consultorias para PMEs. Assim, o “benefício” se conecta ao “ser produtivo”.
Trabalhar pra quê? Para protagonizar, não sobreviver
No fim, a pergunta “trabalhar pra quê?” carrega uma provocação — e uma esperança. Provocação: para que serve o trabalho se nós o tratarmos como mera necessidade de sustento, e não como veículo de propósito, dignidade e amplitude da cidadania? Esperança: de que o trabalho seja uma expressão de autonomia, de produtividade, de criação de valor — e que os auxílios sociais sejam parte de uma escada para esse patamar, e não um destino em si.
Se o Estado já desembolsou quase R$ 1,5 trilhão, que esse dinheiro seja uma base para algo maior: para uma retomada do protagonismo dos trabalhadores, das empresas, das regiões do país que ficaram à margem, e para que quando alguém pergunte “trabalhar pra quê?”, a resposta seja clara: para gerar valor, para crescer, para transformar.







