
Mais uma vez, o Brasil é sacudido por uma tragédia evitável. Mortes — ao menos 12 até agora — e dezenas de casos graves de intoxicação por metanol acendem o alerta sobre um crime que fere bem mais que a vida: fere a credibilidade do Estado, a segurança sanitária e a confiança do cidadão em um governo que reage tarde demais. É triste constatar que, nessa história recente, há vítimas silenciosas: a omissão e a letargia institucional.
O surto como espelho da omissão
O surto de metanol escancarou uma dolorosa verdade: a máquina pública — federal, estadual e municipal — demorou a responder. Enquanto vidas se perdiam, debates acadêmicos e técnicos sobre rastreabilidade, regulação ou selo antifraude ganharam voz nas redes. Mas pouco havia nas ações concretas.
O discurso oficial insistia que tudo estava sob controle, que não havia “evidência” de causas em massa. Só quando as estatísticas tomaram corpo — ao som de sirenes em emergências hospitalares e temores sobre lotes — é que começaram as operações, interdições e gabinetes de crise. Por que só agora?
Fragmentação: o grande calcanhar de Aquiles
Em tese, o sistema regulatório existe: MAPA, Vigilâncias Sanitárias, Polícia Federal, Receita, secretarias estaduais de saúde — cada instituição com sua atribuição. O problema? As engrenagens não se engrenaram. Faltou coordenação contínua, fluxo de dados, competência técnica parecida de costa a costa.
Imagine um ladrão que “reutiliza” garrafas originais, apenas adulterando o conteúdo. O controle nasce no lote, deveria permanecer no rótulo, seguir no transporte e alcançar o consumidor — com checagens. Mas nisso, o Brasil dependeu de “rachos” discretos de fiscalização — muitas vezes reativa, nunca preventiva.
O tema do SICOBE, desligado há anos, voltou ao centro do debate. Para uns, sua ausência foi decisiva. Para outros, é pretexto para desviar o foco: o que falta hoje não é apenas um sistema nacional, mas vontade política para mantê-lo funcional, integrado e auditável.
A falácia da resposta emergencial
Quando o governo institui grupo de trabalho ou gabinete de crise, não se discute a emergência — apenas se reage a ela. Precisávamos de ação meses atrás: blitzes permanentes, laboratórios com capacidade oxigenada, campanhas educativas, selagem antifraude, destruição veloz de insumos suspeitos.
Sim, há hoje operação conjunta entre PF e MAPA, vigilâncias interditando pontos e a Justiça autorizando destruição de garrafas. Ótimo. Mas isso é brincar de apagar incêndio enquanto a casa arde. A crítica de “inação” permanece porque não é só o agora: é o antes que foi omitido.
O peso para o cidadão e para o mercado
O consumidor se vê refém: “beber é um risco”. O comerciante formal sofre concorrência desleal com o clandestino. Fabricantes honestos veem sua marca vilipendiada — e ninguém responde por isso de maneira proativa. Estamos diante de um triângulo perverso: o criminoso que lucra sem freio, o cidadão que adoece e o governo que acorda tardiamente.
Além disso, há custo social altíssimo: UTIs, cegueiras temporárias, demandas pela saúde pública, sobrecarga hospitalar. Isso tudo opera como externalidade negativa de uma falha institucional.
Propostas (e urgências) que vão além do discurso
- Rastreabilidade bi-direcional por lote/garrafa: QR ou NFC embutido, comd controle público acessível, auditorias independentes, integração nacional. Não é tecnologia cara, é decisão política.
- Logística reversa e destruição expressa: Estabelecimentos que recolhem garrafas suspeitas para destruição rápida. Justiça agilizando autorização nacionalmente, não estado a estado.
- Blitz nacionais permanentes: Operações conjuntas e regulares fixas, com metas mensuráveis. Não apenas pontuais — presença institucional articulada.
- Rotulagem e selo antifraude obrigatório: Selo que o consumidor possa verificar em app oficial (sim, contra falsificação de selo). Transparência total.
- Laboratórios policial-federais e boletins públicos: Resultados semanais das análises, lotes suspeitos divulgados, mapas regionais de risco. Informação é dissuasão.
- Penas punitivas e ressarcimento: Tipificar como crime contra a saúde pública, incluir confisco de ativos e proibição de atuação comercial futura. Quem arrisca vidas deve pagar não só em multa.
A inflexão que precisamos enxergar
Uma coluna como esta poderia servir para acender um debate passageiro. Espero que não: chego a crer que este surto de metanol seja um divisor de águas — ou continuará como mais uma cicatriz no relato cotidiano do Brasil. Uma coisa é certa: vamos medir o governo não pelas notas oficiais, mas pelas vidas salvas, pelas garrafas destruídas e pela frequência da ação governamental.
Se depois de tudo isso ainda ouvirmos desculpas sobre “investigação lenta”, “ausência de provas” ou “complexidade do sistema”, estaremos atestando que o Brasil se acostumou com inação — e que o povo, as vítimas e as marcas honestas continuarão a pagar o preço.
E se o governo fechar os olhos de novo, que não diga depois que não viu.