
Nas últimas semanas, o Senado tem se dedicado a discutir o Projeto de Lei nº 4/2025, que propõe a mais profunda reforma do Código Civil desde sua entrada em vigor, em 2002. São mais de 900 alterações sugeridas e cerca de 300 novos dispositivos. A dimensão da mudança, por si só, já exige cautela. Mas o que mais chama atenção — e preocupa — é o tratamento dado ao direito de família, base estruturante da vida em sociedade.
Críticos não exageram ao dizer que, se aprovado como está, o projeto ameaça implodir o conceito de família no Brasil. A retórica dos defensores é a de modernização, atualização e adequação aos novos arranjos sociais. O discurso é sedutor. Mas, na prática, abre-se a porta para uma verdadeira desconfiguração do que entendemos como família, criando insegurança jurídica e fragilizando instituições que garantem proteção aos mais vulneráveis.
A família sob ataque conceitual
O texto propõe, entre outras mudanças, ampliar a definição de família para além das formas já reconhecidas — casamento, união estável e filiação. O problema é que o critério central passaria a ser o afeto. Relações baseadas apenas em convivência, amizade íntima ou vínculos subjetivos poderiam, em tese, ganhar status jurídico de família.
Ao colocar o afeto como medida jurídica absoluta, o projeto transforma sentimentos — voláteis e mutáveis — em fonte de direitos e deveres permanentes. Como exigir obrigações alimentares ou sucessórias a partir de uma categoria tão subjetiva? A consequência é óbvia: litígios sem fim, disputas patrimoniais imprevisíveis e um Judiciário sobrecarregado com casos difíceis de comprovar.
O risco do “convivente”
Outra inovação problemática é a criação de um novo estado civil, o “convivente”. Equiparar relações informais, muitas vezes de curta duração ou sem intenção clara de constituir família, ao casamento ou à união estável é banalizar as instituições que sempre tiveram um caráter de estabilidade e compromisso.
Na prática, bastaria provar uma convivência de fato para gerar direitos de herança, alimentos e partilha patrimonial. Imagine-se o impacto disso em relações paralelas, “amizades coloridas” ou uniões poliafetivas. O projeto não apenas reconhece essas possibilidades, como cria brechas para que sejam registradas em cartório.
Menos controle, mais insegurança
Outro ponto grave é a retirada do Judiciário em situações sensíveis. Pelo projeto, a filiação socioafetiva de maiores de idade poderia ser reconhecida diretamente em cartório, sem análise judicial. O mesmo ocorreria com a adoção de maiores. Aparentemente inofensivo, esse detalhe abre espaço para manipulações patrimoniais: de heranças desviadas a adoções simuladas para fins de fraude.
Sem a devida chancela judicial, a segurança jurídica desaparece. Cartórios passariam a exercer funções para as quais não estão preparados, e famílias inteiras poderiam ser surpreendidas por vínculos criados sem transparência ou fiscalização.
A banalização do casamento
O casamento, pilar da estrutura familiar, também não escapa. O projeto prevê a possibilidade de celebrações sem solenidade, até mesmo virtuais. Ora, o casamento nunca foi apenas uma formalidade burocrática: é um contrato social de relevância comunitária, que exige publicidade, testemunhas e ritualidade justamente para garantir a seriedade do vínculo. Reduzir o ato a um clique em videoconferência é empobrecer a instituição e diminuir sua força simbólica.
O direito de família não é laboratório
É inegável que o direito deve acompanhar as transformações sociais. Mas reformas não podem ser feitas de forma açodada, com base em slogans como “modernização” ou “reconhecimento do afeto”. O risco é transformar o Código Civil em um laboratório jurídico de experimentos que, longe de fortalecer vínculos familiares, os fragilizam.
A Constituição Federal já garante proteção ampla às entidades familiares e ao princípio da dignidade humana. O que falta não é lei nova, mas aplicação efetiva da legislação existente, com sensibilidade para situações particulares e respeito ao que a sociedade reconhece como base sólida da vida em comum.
Modernização ou implosão?
O novo Código Civil, da forma como está, não representa avanço. Representa ruptura perigosa. Ao desfigurar o conceito de família, ao reduzir solenidades a meras formalidades, ao retirar o Judiciário de decisões delicadas, cria-se um cenário de incerteza.
Modernizar não é destruir. Reconhecer novas formas de convívio não deve significar implodir os alicerces que sustentam a vida familiar. Se há um campo do direito que exige prudência, cuidado e visão de longo prazo, é o direito de família. O Brasil não pode se dar ao luxo de brincar com a instituição que sustenta sua própria coesão social.