
Se você quiser entender por que Santa Catarina tem um tecido social denso, indústria capilarizada e agro de alta produtividade, olhe para a base: clubes comunitários, igrejas, cooperativas e, a partir dos anos 1960–70, as universidades comunitárias. Esse ecossistema criou normas de confiança, governança e educação aplicada que explicam boa parte do “efeito SC” — crescimento com raízes locais e redes que resistem a crises.
Antes do diploma: a escola da vida associativa
No século XIX, com a imigração de matriz germânica, surgem as sociedades de tiro (Schützenvereine) — clubes que organizavam festas, regulamentos, assembleias e prestação de contas. O Schützenverein Blumenau (1859) é geralmente citado como o primeiro; nas décadas seguintes, o Vale do Itajaí veria dezenas deles e um calendário de eventos que treinava liderança, cooperação e organização voluntária.
Pesquisas recentes mostram como essas sociedades ajudaram a forjar “cultura cívica” local, muito além do lazer, constituindo uma célula de associativismo duradoura.
Em paralelo, igrejas (luteranas e católicas) funcionaram como infraestrutura cívica: catequese, escolas paroquiais, mutirões, mediação de conflitos e caixas comunitárias. A presença luterana no Vale do Itajaí é documentada desde meados do século XIX; sua rede de comunidades e paróquias passou 150 anos ensinando, na prática, participação e corresponsabilidade.
No catolicismo, entidades como a Cáritas SC articularam assistência, formação e mobilização solidária em todo o estado — hoje com entidades-membro em regiões como Blumenau, Chapecó, Lages e Criciúma.
O salto econômico: cooperativas transformam confiança em crédito, escala e valor agregado
Quando esse capital social encontra necessidades produtivas, nasce o cooperativismo. Em 1951, funcionários da Cia. Hering criam a CrediHering (semente da Viacredi e depois do Sistema Ailos), para financiar casa, máquinas e bens de trabalho — um crédito de proximidade que ampliou consumo, capital de giro e bancarização local.
No Oeste, oito cooperativas se integram em 1969 para industrializar proteína animal: nasce a Aurora (hoje Aurora Coop). A intercooperação trouxe sanidade, tecnologia, logística e exportação, elevando renda de pequenos produtores e criando empregos industriais.
Como isso moveu o ponteiro do desenvolvimento?
Redução de custo de transação (confiança) + governança democrática (assembleias, conselhos) = crédito mais barato e investimento recorrente.
Integração vertical e escala regional (caso Aurora) = produtividade e inserção externa com base em produtores familiares.
A “virada universitária”: comunidades criam ensino superior para o interior
Nos anos 1960–70, prefeitos, empresários e entidades locais concluem que é preciso fixar talento no interior. Surge o modelo catarinense de universidades comunitárias — instituições não estatais, sem fins lucrativos, mantidas por fundações locais, organizadas em rede pela ACAFE (1974). A missão: ensino, pesquisa e extensão voltada ao desenvolvimento regional.
No Oeste, a FUNDESTE/Unochapecó (1970) é marco da interiorização: fruto de assembleia comunitária, vira o polo de formação de quadros técnicos e incubação de soluções para agroindústria, saúde e gestão pública regional.
O sistema se expande e hoje reúne 10 universidades e 4 centros universitários catarinenses, todos com perfil comunitário e de impacto territorial.
Estudos acadêmicos mostram como essa rede ajudou a dispersar a oferta de cursos, reter jovens e especializar economias locais (serras, litoral, Vale e Oeste) — uma interiorização de ensino superior difícil de replicar sem o arranjo comunitário.
Em termos práticos: as comunitárias catarinenses fizeram política de desenvolvimento regional antes de isso virar palavra de ordem — formando engenheiros para polos têxteis, veterinários e tecnólogos para o agrointegrado, administradores e contadores para o tecido de PMEs, além de projetos de extensão com prefeituras e cooperativas.
Como as quatro engrenagens se acoplam
Clubes treinam liderança e confiança → Igrejas estruturam redes de ajuda e educação de base → Cooperativas transformam coesão em crédito, escala e exportação → Universidades comunitárias formam capital humano, fazem P&D aplicada e extensão.
O resultado é um círculo virtuoso catarinense: governança local + talento local + capital local = desenvolvimento de dentro para fora.
Linha do tempo com marcos sintéticos
1859 – Schützenverein Blumenau; associativismo de base se institucionaliza no Vale.
1850–1900 – Redes paroquiais luteranas e católicas estruturam escola, caixas e mutirões.
1951 – CrediHering (Viacredi/Ailos): cooperativismo de crédito urbano-industrial em Blumenau.
1969 – Aurora (intercooperação agroindustrial) em Chapecó: valor agregado no Oeste.
1970 – FUNDESTE/Unochapecó: começo da interiorização universitária no Oeste.
1974 – Criação da ACAFE: consolidação do modelo de universidades comunitárias de SC.
O que Santa Catarina ensina ao Brasil
Primeiro, desenvolvimento não nasce só de Brasília. Nasce de instituições de base, onde o cidadão aprende a decidir em assembleia, prestar contas, votar orçamento, confiar e cooperar. SC cultivou isso nos clubes e igrejas — e depois o transformou em crédito, agroindústria e ensino superior com rastro territorial.
Segundo, o “segredo” catarinense não é um setor, mas um método: confiança + governança + qualificação + redes locais. Quando as universidades comunitárias chegam, elas não concorrem com o ecossistema — elas o organizam, conectando prefeitura, cooperativa, hospital, escola técnica e indústria em projetos de extensão e P&D com dono — a comunidade.
Terceiro, isso é estratégia anticíclica. Em enchentes, pandemias ou choques de preço, a malha de clubes, paróquias, Cáritas, cooperativas e universidades ativa fundos, laboratórios, assistência e capacitação. É por isso que SC costuma voltar mais rápido: rede densa amortece quedas e acelera retomadas.
Para avançar com três propostas objetivas
Plano estadual de extensão orientada a resultados: metas anuais por universidade comunitária ligadas a problemas municipais (saneamento, saúde primária, digitalização de PMEs), com avaliação pública.
Fundo cooperativo–universitário de P&D aplicada (agro/indústria/tecido urbano), alavancado por ONA/OCESC e prefeituras, para acelerar protótipos e formação técnica de média complexidade no interior.
Programa de capital social: incentivar clubes e entidades comunitárias a retomarem práticas de gestão (orçamento, compliance, prestação de contas), conectando-as às trilhas de formação de universidades comunitárias e a linhas de crédito cooperativo.
Em uma frase
Santa Catarina fez do associativismo uma política de desenvolvimento: clubes e igrejas criaram o alicerce; cooperativas deram o motor; universidades comunitárias puseram o volante e o painel de controle. É uma lição de país.