Prestes a completar 35 anos, a “constituição Cidadã” promulgada em 1988, trouxe avanços e inovações para a época, que pelas mudanças ocorridas no Brasil e no mundo, boa parte delas se tornaram obsoletas e se transformaram em verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento do Brasil, que aflorou as contradições da realidade brasileira.
O Brasil gerado a partir da Constituição reproduz as contradições do documento. Combina mecanismos de regime parlamentarista, num país presidencialista. Liberal nos costumes e nos direitos políticos, calcarizou um modelo econômico que tem se mostrado retrógrado. Imperfeita como todas, a Carta de 1988 expressa as contradições daquilo que o Brasil deseja ser.
O amalgama da Constituição brasileira é a igualdade de todos perante a lei, o direito de eleger governantes, o direito a uma vida digna e livre. Organizações com apoio popular podem questionar a legalidade de medidas no Supremo Tribunal Federal (STF). O racismo tornou-se crime inafiançável. Índios são tratados, ao menos perante a lei, como cidadãos. Mais frágeis, crianças, adolescentes e idosos são protegidos por uma legislação específica. Um consumidor pode enfrentar uma empresa caso se sinta injustiçado. Está garantido o direito de todo cidadão a uma aposentadoria e a ser tratado gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). A partir daí, nasceram vários benefícios Sociais, entre eles, o Bolsa Família, auxílio Brasil que foram mecanismos responsáveis por tirar milhões da faixa da miséria.
A Constituição brasileira é uma das mais extensas do mundo. Nasceu com 245 artigos e 1.627 dispositivos. Foi feita num momento tendo como os atores principais, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Mário Covas, Jarbas Passarinho, Roberto Campos, Delfim Netto, Florestan Fernandes, Nelson Jobim, Luís Eduardo Magalhães, Afonso Arinos, Nélson Carneiro, José Serra, Roberto Freire, entre outros.
Desde então, o texto cresceu mais de 40%, com 128 as emendas, sendo a última datada de 22 de dezembro de 2022. Importante frisar que além das emendas constitucionais regulares, a Constituição, no art. 3.º do seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), dispôs que deveria ser feita uma revisão constitucional após cinco anos da promulgação da Constituição, o que passou batido.
Apesar dessa bela história, ela hoje vive a sua prova de fogo, pois os acontecimentos dos últimos dois anos tem se demonstrado como o período mais conturbado após a redemocratização. Boa parte dos males da república afloraram e mostraram para a população a dinâmica nefasta que foi empreendia por anos e que levou a nação brasileira para a condição que se encontra.
Fruto dessa perniciosidade extrema é a captura sem limites de instituições republicanas, que são povoadas por asseclas dos partidos políticos, amigos ou familiares dos eleitos, na maioria brutal das vezes, pessoas que além de totalmente despreparados para os desafios que esses cargos de alta relevância impõe, estarão lá na função para fazer um jogo de cartas marcadas.
Nesse diapasão, aproveitando a dispersão e desmobilização da opinião pública durante a pandemia instalada no mundo, diferentes representações partidárias, da esquerda à direita, unidas no propósito de acertar a impunidade aos crimes de colarinho branco, principalmente aqueles envolvendo a subtração de dinheiro público, vêm articulando a aprovação de mudanças legislativas enfraquecedoras do nosso sistema anticorrupção.
Eu diria que a mais emblemática delas foi a reforma da Lei de Improbidade Administrativa, apropriadamente apelidada de Lei da Impunidade, verdadeiro retrocesso de 30 anos na defesa do patrimônio público e dos princípios constitucionais que disciplinam a administração pública. Mas não é só, várias outras iniciativas legislativas estão em andamento para anular qualquer sonho de combater a corrupção com um mínimo de eficácia. Está se tornando virtualmente impossível punir um ladrão do dinheiro público.
Isso, ao lado de decisões juridicamente descabidas tomadas pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, deu uma contribuição decisiva para o desmantelamento da batalha nacional anticorrupção, que inegavelmente conheceu um impulso inédito entre nós a partir dos casos que ficaram conhecidos como Mensalão e Petrolão.
Não podemos desmerecer as decisões acertadas do STF em várias questões envolvendo aspectos relevantes do regime democrático, mas por outro lado, é inegável que por diversas vezes tem pecado por excessivo ativismo judicial, paralisando e ou alterando iniciativas próprias dos outros poderes, tornando insano o funcionamento das nossas instituições republicanas.
Essas intervenções embriagadas e apaixonadas do STF e as várias decisões criminais que, na prática, desmantelaram o nosso arcabouço jurídico-institucional anticorrupção explicam a perda de confiança e credibilidade da nossa Corte Suprema junto a grande parcela da população.
E veja que na arquitetura da constituição, foi conferido ao Supremo Tribunal Federal o papel de Guardião da Constituição Federal, competindo-lhe dirimir, como última ou única instância judicial, os conflitos que envolvam diretamente temas constitucionais da República.
A Constituição, sabiamente tem no seu texto antidoto para todos os defeitos citados. Seu texto permite aos brasileiros insatisfeitos modificá-la ou exigir seu cumprimento. Se isso não é feito, é por culpa ou incompetência de todos, que no conjunto, pouco avaliam sobre a conduta dos representantes legislativos e o pior, se prestam, ambos os polos da atual divisão nacional, a aplaudir as peripécias governamentais e as manifestações transloucadas daquele que está como daquele que passou por último pelo cargo máximo de Presidente da República.
Defendo a constituição contra os que a atacam, pois a rigor, o tom da banda Republicana não é dado por ela, como de fato deveria ser, mas pelas forças políticas dominantes que estão encrustadas no poder central – leia-se: Congresso Nacional. Quem controla o orçamento, controla o governo. Temos hoje um parlamentarismo tupiniquim, resultante de um governo federal emparedado pelos seus problemas jurídicos e policiais, que tem se demonstrado incompetente e desinteressado em resolver os grandes problemas nacionais.
Importante mantermos a confiança na colossal nação brasileira, mas é necessário convir que estamos travados e nada de estratégico e contundente está sendo formulado para tirar o Brasil desse atoleiro que o colocaram.
Ebulição Republicana
Leia a coluna de Ricardo Cavalli na Quinta da Opinião
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