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Gregor Samsa somos nós

Leia a coluna de Vitor Marcelo Vieira na Quinta da Opinião

Você ouviu a seguinte frase? “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Se já, saiba que se trata da primeira frase um clássico da literatura e por ser um clássico, é sempre atual. E digo isso porque o cotidiano de Gregor Samsa é o da maioria das pessoas do planeta Terra. Toda essa maioria acorda cedo para ir trabalhar e talvez tenha uma série de inquietações e infelicidades para expressar, como Kafka faz na sua obra. E, digo que esse é mais um motivo pelo qual A Metamorfose é um clássico da literatura mundial. E sempre será, pois mesmo que um dia a sociedade destrua o capitalismo, ou este destrua a humanidade, ainda talvez possa restar um fragmento deste livro para que no futuro alguém leia e descubra como era o cotidiano da maioria dos habitantes deste planeta.

Gregor Samsa vive com sua mãe, pai e com a irmã. A narrativa se concentra numa situação embaraçosa em que os três tentam se esforçar para descobrir o comportamento adequado para a situação que se desenrola. Ele acorda e tem sua consciência envolvida por um corpo que é estranho para ele, um corpo antinatural. Mas toda essa situação é narrada de uma forma fria e num tom preciso como se o pesadelo fizesse parte do cotidiano de todos os envolvidos no diálogo. O que posso dizer da obra de Kafka é que ele escreve suas dores. As dores de quem tem um cotidiano interminável e sem perspectivas de nada. Dia após dia as infelicidades se acumulam, e toda essa saga é sintetizada numa situação de diálogos característicos de uma manhã antes do horário de expediente.

Pois, afinal de contas Gregor Samsa, após sonhos intranquilos, acorda pela manhã e se vê transformado num inseto gigante que tem uma couraça dura. Ele pode sentir isso, pois está de costas com as inúmeras perninhas descontroláveis para o alto. Se ve numa situação que só pode erguer um pouco a cabeça e ver que seu ventre é marrom e abaulado. Está tomado por pensamentos intranquilos sobre o cotidiano de um caixeiro-viajante que deve pegar o trem para ir ao trabalho. Kafka não diz o nome do inseto gigante no qual Gregor se transformou, mas os detalhes que vão surgindo ao longo da narrativa fazem o leitor imaginar do que se trata. Lembro que devorei o livro A Metamorfose nas noites em que fiquei ao lado de meu pai, quando ele estava internado num hospital em São Miguel do Oeste, SC.

Nessas noites estava ali presente de corpo, mas a imaginação me fazia sair do hospital, viajando para bem longe. Meu pai na cama ao lado não imaginava do que tratava o livro que eu lia ali ao seu lado. Aliás, gostaria de aproveitar e dizer que ele hoje com 79 anos talvez não conheça a obra do Kafka e provavelmente terminará seus dias sem ao menos se deleitar com essa e outras obras-primas que a humanidade produziu. Junto com ele, talvez mais uns quatro bilhões ou mais, de pessoas. Mas mesmo assim, quase que certamente, em qualquer lugar do planeta, que você falar a primeira frase do livro, estará falando uma língua universal, pois assim é Kafka, universal. A Metamorfose é um daqueles livros que você não deve ler apenas uma vez na vida, mas várias.

Ademais, sua narrativa trata da angústia de bilhões de pessoas que no amanhecer são desgostosas com o que fazem, com aquilo que devem fazer ao saírem de casa nos instantes que surgem os primeiros raios do sol. Todo autor escreve a partir das inquietações de seu tempo e reflete isso na sua obra. É possível perceber a dor de Kafka em todo o livro, inclusive quando Samsa diz “Ah, meu Deus! Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia, viajando. Me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso!”.

O tique-taque do relógio deixa Gregor Samsa em desespero, quando a dança das horas avança para seis e meia. Nesse instante ela já pensa sobre “o que deveria fazer?” O próximo trem iria partir as sete horas. E mesmo que conseguisse pegar esse, não evitaria uma explosão do chefe, pois, um imediato da firma já estava no trem e já havia comunicado a falta de Gregor. Gregor sabia que esse imediato do chefe era uma criatura sem piedade nenhuma. Mas logo o gerente da firma chegou à casa de Gregor e agora junto com sua família se postava junto a porta do quarto e passava a travar um diálogo para saber se ele estava doente. Ele, no entanto, passa a falar de dentro de seu quarto pensando que seus interlocutores do outro lado o entendiam perfeitamente. Até que o gerente pergunta se alguém havia entendido alguma coisa que ele disse, porque somente se ouvia sons de um inseto. Mas naturalmente não tenho a pretensão de fazer aqui uma análise completa da obra-prima de Kafka.

É preciso que o meu leitor leia e crie seu próprio entendimento a partir de sua imaginação. Isso é Literatura Clássica, meus caros leitores. Espero que eu tenha despertado em você prezado leitor desta coluna, a curiosidade para este livro. Leia muitas vezes, use e abuse da literatura. Ela é o que nos faz suportar a dureza do cotidiano. Boa leitura. Um grande abraço, bom final de 2022.

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