O filme iraniano de 1998, intitulado “A Maçã”, traz à tona, mais uma vez, a ambiguidade que os filmes produzidos neste país apresentam. Ressalto isso na medida em que escolho fazer uma comparação com os filmes de Abbas Kiarostami, poeta, cineasta, roteirista, produtor e fotógrafo iraniano. Aliás, os filmes iranianos têm essa característica; sempre deixam um gostinho de quero mais. São, sobretudo, reflexivos e perturbadores, no bom sentido. Ou seja, no final, eles nos deixam suspensos.
No filme “A Maçã”, vemos duas meninas que são mantidas em regime de encarceramento na casa onde moram com seus pais. Quando assisti ao filme, num primeiro momento, percebi a extrema condição de conservadorismo religioso que a mãe das meninas apresenta. Isso por si só já explica muito sobre essa escolha dela e de seu marido de não deixar as meninas saírem de casa. A mãe é controlada pelo poder masculino da religião islâmica, e ao mesmo tempo, ela mesma participa e legitima essa dominação ao dizer que as crianças devem cobrir a cabeça e o rosto, pois assim é que ela, como mãe, se apresenta em boa parte do filme.
O pai expressa sua cegueira latente com respostas confusas e perturbadoras quando é questionado pelos vizinhos sobre essa crueldade imposta às filhas. Porém, ele escapa das perguntas ao não considerar uma crueldade a forma como trata suas filhas.
No filme, é possível observar também a presença do Estado no contexto da vida dessa família muçulmana. Isso é importante identificar, pois possibilita entender como a compreensão de como a instituição Estado exerce sua abordagem na vida das pessoas comuns daquele país. Somos levados a acreditar que o Irã, enquanto Estado teocrático, interage de forma diferente na vida das pessoas, pelo menos quando comparado com as formas de intervenção estatal no Ocidente. A participação da assistência social na vida das crianças é o que possibilita ver a presença do Estado.
As crianças que vivem isoladas em casa com seus pais utilizam uma fruta, ou seja, uma maçã, que aparece em várias cenas no filme. Isso demonstra a ideia de liberdade que o autor quer transmitir em relação à situação que as meninas estavam passando. A fruta, que aparece em várias partes do filme, leva o espectador a pensar que o autor utiliza um símbolo presente no mito da criação da cultura judaico-cristã. A fruta está presente no mito fundante do Jardim do Éden, onde estão Adão e Eva.
O pai, cego por questões religiosas e misóginas, acreditava que era o destino delas ficarem em casa. É perceptível nos diálogos travados entre o pai das meninas e os vizinhos que ele sabia que elas precisavam ir à escola. Mas é inquietante porque, a todo momento, ele se defende dizendo que não pode fazer nada. Há uma cena em que é oferecido dinheiro para ajudá-lo e, no entanto, ele se esconde atrás de suas crenças fanáticas, que acabam por prejudicar e ceifar a vida de suas filhas. As meninas, como são constantemente vigiadas, acabam internalizando os costumes ao serem moldadas pela disciplina instaurada pelos pais. Em outras palavras, as crianças participam da vigilância ao se sentirem vigiadas.
É nesse ponto que gostaria de considerar que não há diferença da abordagem do Estado no Irã em relação aos países ocidentais, pelo menos no que se refere a tornar os corpos úteis à economia de mercado. O Estado aqui intervém porque esses corpos, da maneira como eram tratados, não se tornam úteis e, portanto, devem sofrer a intervenção estatal. O fato de o Irã ser um Estado Teocrático não quer dizer que não esteja inserido na lógica do capitalismo, sistema econômico vigente e preponderante em todas as nações do planeta.
Diante disso, essas crianças precisam urgentemente sair daquela condição. Elas, como todas as outras crianças, precisam ser inseridas na lógica do sistema capitalista, que, embora tenha características diferentes pelo mundo, revestido das diferentes culturas e religiões, possui os mesmos mecanismos em todos os pontos do planeta.
Ao assistir ao filme, temos a impressão de que se torna legítima a dominação patriarcal da família com as filhas. Mas, ao tomarmos distância, o que podemos perceber é que temos aí uma violação dos direitos humanos. Não importa o local do planeta e a cultura, a violação dos direitos humanos é a mesma em todo o mundo. Seja como for, não é legítima nenhuma forma de violência contra o ser humano, principalmente contra as crianças, em qualquer canto deste planeta.
Como podemos observar, as crianças do filme “A Maçã” sofrem duas formas de vigilância. A primeira é a familiar que decidiu o destino delas, atormentadas que estavam pelos dogmas religiosos. A outra forma é a intervenção do Estado na vida dessas pessoas com o intuito de moldar de forma homogênea os corpos, submetidos a uma lógica de utilidade.